11 fevereiro, 2006

 

Sentir primeiro, registrar depois

Quando eu estava me preparando para um dos testes “Cambridge”, encontrei um texto em que o autor reclamava do uso indiscriminado das máquinas fotográficas. A princípio me pareceu falta do que reclamar, mas hoje concordo com ele em gênero, número e grau e lamento não ter tomado nota das referências do texto. Ele citava como exemplo o “turismo cult”, em que as pessoas vão a lugares considerados “exóticos” (África, por exemplo). Entram na casa dos habitantes nativos, em suas cozinhas, e, em vez de interagir, perguntar o que estão cozinhado e provar um pouqinho, sacam as máquinas digitais, os celulares que filmam e toda a sorte de maquininhas e começam a “registrar” tudo. Como se estivessem em um zoológico, escolhendo o melhor ângulo para fotografar a girafa.

Ontem eu me senti um pouco como a girafa. Aconteceu a festa de despedida da Cris, cheia de “amigos do amigo do amigo” que eu nunca tinha visto na vida. Fui dançar forró com meu amigo brasileiro e, sem mais nem menos, começaram a piscar flashes de máquinas por todos os lados. Olho para o lado e tem um chinês filmando pelo celular, olho para o outro lado e tem um taiwandês ajeitando a máquina às pressas para filmar também. Ninguém pediu permissão, ninguém perguntou se por acaso eu me incomodava. Falta de respeito! Foi como se eu estivesse fazendo uma apresentação exótica (sim, porque para eles o forró é quase um show de sexo explícito), um show particular. Mas eu não estava. E ninguém me perguntou.

Há pouco tempo passei por outra crise de raiva das fotos que quase pôs fim às minhas “relações diplomáticas” com a Cris. Uma vez eu tinha visto a “coitada” virando a máquina ao contrário para fazer fotos de si mesma e caí na bobagem de me oferecer para tirar fotos dela. Depois disso, não tive mais descanso. Em um fim de semana saímos para visitar as ruínas de um castelo, mas estava chovendo e fazendo frio. E as tais ruínas ficam a céu aberto. Já cheguei com vontade de ir embora. E começou a torturante sessão de fotos... dela. “Não, essa aqui não ficou boa, faltou passar batom. Tira de novo”. "Meu cabelo está horrível, faz outra." “Estou muito gorda. Outra.” Nessas horas eu tinha que aprender a ser como o Z, que no meu lugar diria uma meia dúzia de palavrões e iria embora cuidar da vida. Ele é que é feliz, está em um estágio mais iluminado. Mas eu, bobinha, fiquei lá, encharcada, tirando as luvas, congelando as mãos para apertar o pininho da máquina, agachando no chão gelado, ficando nas posições mais esdrúxulas para achar o ângulo que “ela” queria. Depois de várias horas tentando “ad nauseum” (essa expressão também aprendi estudando para o Cambridge) fazer as melhores fotos... “dela”, comunico que vou embora. Ela faz um bico sem tamanho, uma cara de traída e diz “aaaaah, não! Mas eu nem tirei foto ainda do lado daquela árvore, nem naquela porta, nem...” (e começa a enumerar a listinha de cenários). Foi dose. Depois voltamos às boas, tanto que organizei a festinha dela. Mas, me digam, vocês acham que alguém curtiu o castelo naquele dia?

Eu gosto de “sentir” o lugar. Quando cheguei na Escócia e fui ver o mar, sentei e fiquei uns 20 minutos sem fazer nada, só olhando o mar. Sentindo a beleza dele com o restinho da luz do dia, sentindo os cheiros, o frio, a dor nas pernas de tanto andar, o alívio e a alegria de ter chegado até lá. Depois de registrar na memória, aí sim fiz duas ou três fotos antes de começar o caminho de volta. As fotografias registraram minha interação com aquele lugar, naquele momento. Mas algumas pessoas invertem a ordem das coisas e abrem mão da experiência para “registrar” tudo na máquina.

Se você não sentiu, não experimentou, não vivenciou, está querendo registrar o quê, cara pálida?





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