19 janeiro, 2006

 

Getileza gera gentileza



Gentileza gera gentileza. Eu deveria acreditar nisto mais vezes. No Brasil, em moro em um lugar de gente tão estúpida que às vezes fico desanimada. Mas eu deveria enxergar estas coisas dentro de um ambiente estatístico. Se eu for gentil com 10 pessoas e uma delas retribuir a gentileza, 10% é um resultado super significativo!

Passei o Natal em Edimburgo, longe dos parentes e amigos, então distribuí cartõezinhos de Natal para as pessoas que eu conheço aqui. Foi o máximo que meu orçamento permitiu. No dia 26, uma das moradoras da pensão foi até o meu quarto levando uma espécie de panetone, que ela chamou de pão doce alemão, uma caixinha de bombons e um cartão. Em retribuição ao meu cartãozinho.

Outro colega de pensão havia dividido comigo o meu jantar, um pouco antes do Natal. Ofereci e ele aceitou, depois de agradecer milhares de vezes. Ontem ele voltou das férias e trouxe uma comida que a mãe dele fez especialmente para mim. Preparou e fez questão que eu comesse. Bonitinho, né? Lindo, se não fosse por um detalhe.

Mas vamos começar a história do começo. Pelo que ele explicou, entendi que a comida era carne de porco, picada em cubinhos, com um molho picante. Parecia bom! Estava sentada à mesa com ele, comendo e conversando, quando ele diz que o sabor do “liver” ficou bem discreto. Neste momento, meus neurônios começaram a maior correria dentro do cérebro, tentando não produzir expressões faciais que denunciassem a gritaria que estava acontecendo lá dentro: “blém, blém, blém, fííííígadooooooooo! Soem todos os alarmes! Como assim, fíííííígadooooooo? Aquela coisa podre com cheiro de vinagre? Blém, blém, blém, blém! Alerta geral! Alerta geral!”. Em toda a minha existência, sempre achei que órgãos de animais não foram feitos para serem comidos. Pelo menos não por mim. Fala sério, tem coisa pior que fígado? (Tem sim, rins, mas isso não redime o fígado).

Nossos pais têm razão. Quando a gente não aprende certas coisas na infância (como comer fígado), acaba aprendendo por outros meios na vida adulta. Mas só volto a comer essa coisa se for enganada com muita gentileza.


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17 janeiro, 2006

 

Sobre nomes e sobrenomes

Outro dia estava conversando com o casal de donos da pensão sobre nomes e sobrenomes. A dona da pensão, quando solteira, tinha o sobrenome do pai. Quando casou-se pela primeira vez, tirou o sobrenome do pai de adotou o do primeiro marido. E agora tem os dois sobrenomes do marido atual. Teve três filhos e colocou neles apenas o “sobrenome macho”. Contei que não quis mudar meu sobrenome de solteira quando me casei e os dois ficaram super espantados e super curiosos: “mas você não gosta do seu marido?” “Claro que eu gosto, ué, casei com ele!” Expliquei que meu nome do meio é da família da minha mãe e o último é da família do meu pai. “Por que você não tirou o sobrenome da sua mãe, pelo menos, para colocar o do seu marido?” Deu vontade de dizer que é porque eu não sou filha de chocadeira, mas fui mais polida.

Costurando este assunto com outro, há cerca de uma semana li uma reportagem na Revista Fapesp sobre aborto seletivo na Índia. Desde então, isso não sai da minha cabeça. De acordo com a reportagem, há um “desequilíbrio intencional no nascimento de garotos e meninas”. 10 milhões de bebês do sexo feminino deixaram de nascer no país nas últimas duas décadas.


O principal motivo é cultural, porque os homens são mais valorizados dos que as mulheres. "O homem continuará o nome e o sangue da família. Além disso, ficará responsável por tomar conta dos parentes mais idosos quando for necessário". O fato mais intrigante é que essa situação é duas vezes maior em mães alfabetizadas.

Ainda chocada com a rejeição às meninas, acabei de ler que na China há garotas que quebram as próprias pernas para, quando operarem, ganharem alguns centímetros.

Por que é que as mulheres se entregam tão fácil? Por que se rendem por tão pouco (ou mesmo que por muito) à insensatez desse mundo? Por que ajudamos a cultivar a idéia de que não temos valor?

Para terminar este assunto com uma coisa boa, encontrei essa entevista com a Ligia Fagundes Teles, na revista TPM. Copiei aqui dois pedacinhos, mas leiam na íntegra porque vale a pena:

"Mulher é, de fato, mais exibicionista do que homem?
É preciso não pensarmos só nas revistas de débil mental que mostram mulher pelada, peitos, traseiro e tal. Acredito que há uma reação de mulheres escapando dessa servidão ao porre de vaidade. Vejo nas fábricas, nas universidades. Rimbaud uma vez disse: “Já cheguei ao limite da minha linguagem. Agora são as mulheres, quando souberem escrever”. As mulheres desvendam coisas que o homem não atinge, está compreendendo? Estão mais perto de uma cortina que se abre. A mulher consegue entrar no labirinto e sair melhor dele. Acho isso mais interessante do que ficar se exibindo por aí. "

"As mulheres fomentam esse deslumbre em relação à imagem, é triste, é passageiro – porque tem a velhice, a morte... Temos de ir às nossas cavernas, explorá-las enquanto o pensamento está poderoso ainda, e deixar de lado a futilidade. Mulheres morrem nas clínicas de lipoaspiração! Vão ler! Vão estudar! As mulheres são muito mais importantes do que pensam. Perdemos um tempo enorme com essas lojas, essas vitrines. Passo aqui perto de casa, vejo os manequins todos sem cabeça, e percebo que está certo: quem pensa muito em moda não pensa mesmo. Pra que a cabeça?"


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16 janeiro, 2006

 

Burns Supper


Os escoceses têm uma característica que eu adoro, que é preservar as tradições e mantê-las vivas na memória. Um exemplo é a procissão das tochas. Outro exemplo foi o meu programa do último sábado, o Burns Supper.

O Burns Supper é um “jantar teatral” para celebrar a memória do poeta escocês Robert Burns. Amigos íntimos do poeta deram início ao ritual, há cerca de duzentos anos, e, até hoje, a tradição é mantida.

Em volta da mesa, todos os convidados recebem o haggis, o prato principal. Em seguida, um escocês, vestido em trajes típicos (não, não tinha vento, gente, uma pena...) recita o poema To a haggis. É grandinho, então vou colocar aqui algumas partes:

Fair fa' your honest, sonsie face,

Great chieftain o the puddin'-race!
Aboon them a' ye tak your place,
Painch, tripe, or thairm:
Weel are ye wordy of a grace
As lang's my arm.



His knife see rustic Labour dight,

An cut you up wi ready slight,
Trenching your gushing entrails bright,
Like onie ditch;
And then, O what a glorious sight,
Warm-reekin, rich!



Ye Pow'rs, wha mak mankind your care,

And dish them out their bill o fare,
Auld Scotland wants nae skinking ware
That jaups in luggies:
But, if ye wish her gratefu prayer,
Gie her a Haggis!


Não, vocês não precisam voltar para as aulas de inglês. Isso aí em cima é “inglês escocês”! Em um resumo muito resumido e simplificado, ele diz que adora haggis, haggis são gostosos, ai que vontade de comer haggis.

Aqui tenho que fazer mais um dos meus inúmeros parênteses para falar sobre o haggis. Antigamente, era feito com estômago do carneiro, preenchido com cereais, temperos e todas aquelas carnes nojentas (livre interpretação pessoal) como fígado e coração. Atualmente, me garantiram que não é mais feito assim e que usam carne “normal”. Comi uma colherzinha de café, só pra dizer que comi, e, depois, maravilha dos tempos modernos, fiquei com a versão vegetariana do Haggis, acompanhada de dois tipos de batatas (claaaaro que tinha que ter batatas).

Voltando ao ritual, quando o homem que está recitando o poema chega na parte 'an cut you up wi' ready slight', ele tira da meia uma faca (é estranho, mas faz parte do traje típico ter uma faca na meia) e estraçalha o haggis.

Depois de encher a barriga com o haggis vegetariano estraçalhado, a última coisa que eu deveria fazer seria dançar e rodopiar, certo? Certo, mas errado. Saí do Burns Supper e fui ao meu primeiro Ceilidh. Mas isso eu conto no próximo texto!


(Imagem do haggis: http://en.wikipedia.org/wiki/Haggis)

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